segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Conto de humor e suspense : Fome tenebrosa - Rita Vasconcelos

Fome tenebrosa

Era uma noite escura e tempestuosa. Eu estava no meu quarto. De madrugada. Com insônia. De novo. Bateu uma fome enorme no meio da noite. O relógio despertador marcava 3:37. E eu com medo de descer as escadas até a cozinha. Medo de assombração.

Estava no meio da escada quando vi uma luz vindo da cozinha. Minha alma saiu de dentro de mim, me chamou de idiota morto de fome, me deu um tapa na orelha e voltou pra dentro do meu corpo.

Me encolhi na escada e fiquei ali paralisado de medo por alguns minutos, mas, para mim, pareceram séculos. Maldita hora que fui sair do meu quarto pra assaltar a geladeira! Se eu tivesse ficado quieto lá, a assombração poderia ficar sossegada assombrando a casa numa boa. Ninguém precisava saber. Ela na dela e eu na minha. Todo mundo feliz. Mas meu estômago é um buraco negro…

Enfim… Ainda tremendo, e com o coração disparado, eu terminei de descer as escadas e fui em direção à porta da sala que ficava logo em frente. Meu plano era pegar a vassoura que minha mãe deixa perto da porta pra espantar visita chata, e atacar a assombração.

Detalhe: em nenhum momento cogitei a possibilidade de que fosse um ladrão, por exemplo. Foquei na ideia de que era assombração e contra assombração o mais eficaz é usar uma vassoura. Se fosse vampiro era alho, e se fosse lobisomem era bala de prata. Fiquei feliz por ser assombração porque não temos bala de prata em casa e o alho fica na cozinha.

Não cobrem pensamento lógico de alguém sonolento, amedrontado e faminto às 3 e tantas da manhã…

Peguei a vassoura e fui me esgueirando na escuridão em direção à cozinha. Pé ante pé. Tomando cuidado para não esbarrar nos móveis da sala e me preparando espiritualmente para pegar a assombração de surpresa. Rezei todas as orações que conhecia. Um total de duas.

Eu já estava na entrada da cozinha, quando vi que a assombração estava mexendo na geladeira. Daí a luz que eu vi da escada.

Levantei a vassoura para armar o golpe certeiro, mas me assustei com um barulhão de peido, esbarrei a vassoura em um vaso de vidro, que caiu e se espatifou!

Eu: _ Ahhhhhhhhhh!

A assombração: _ Ahhhhhhhhhh!

Ela deixa um prato de pudim cair no chão, fecha a porta da geladeira com força e olha pra mim!

Aquela figura horrenda! Com a cara gosmenta, toda verde. Aqueles bobs na cabeça…

Espera aí: bobs na cabeça?

_ Mãe???? Pelo amor de Deus! Quer me matar de susto? O que você está fazendo aqui uma hora dessas? O que é isso na sua cara?

_ Você que quase me matou! Por que chegou gritando, inferno??? Palhaçada! E pra que essa vassoura? Eu vim comer alguma coisa. Por que? Não posso?

_ Pode, mãe… Mas porque não acendeu a luz? E o que é isso na sua cara?

_ É creme, inferno!

Meu pai e minha irmã descem a escada correndo. Meu pai com um rodo na mão.

_ O que isso, gente? O que está acontecendo?

_ Calma, pai! É uma longa história…

No fim das contas comemos o pudim, rimos da situação e combinamos um código para os próximos eventos de assalto à geladeira na madrugada: se você não for um ladrão ou uma assombração, solte um peido!

 

Rita de Cássia Vasconcelos

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