quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Crônica: A raspadinha - Rita de Cássia Vasconcelos

 A raspadinha

                                                        Rita Vasconcelos

 


O medo da violência cotidiana vai tornando- nos cada vez mais insensíveis.

Estava eu na loteria, como sempre, aguardando na fila para pagar meus boletos mensais. Passa por mim uma garotinha de uns 9 ou 10 anos, roupas muito sujas, cabelo despenteado. Instintivamente _ sim, por hora vou colocar a culpa no instinto de autopreservação, podem me julgar _ puxo minha bolsa, que trazia pendurada no ombro, para frente e a seguro junto ao corpo.

A menina passa e vai ao caixa exclusivo para jogos. Pede à atendente uma raspadinha. _ Criança pode comprar jogos? Enfim... _ A garota paga com uma moeda e recebe outra de troco. Ela chega um pouquinho para o lado e ali mesmo no balcão começa a raspar com a moeda o quadradinho que indica a premiação.

Ela começa a raspar bem no meio, e eu começo a torcer para que ela ganhasse. Não ganhou. Se tivesse ganhado, já daria para ver. Se tivesse ganhado já teria mostrado para a moça do caixa que lhe pagaria seu prêmio. Se tivesse ganhado não teria continuado raspando com a moedinha cada milímetro daquele quadradinho. Cada mínimo milímetro... Esperança. Necessidade. Inocência. Talvez o prêmio estivesse ali naquele cantinho! Não estava. Não ganhou...

A menina, então, se dirige para a saída da loteria e eu me viro acompanhando seus passos. Na porta da loteria um carrinho de picolé a esperava.

Nesse instante senti vergonha de mim. O que foi que eu pensei ao puxar a bolsa para junto do corpo? Que a menina ia me roubar? Logo aquela menina que, em vez de brincar de Barbie e desenhar o dia todo como eu fazia na idade dela, estava vendendo picolé, subindo e descendo os morros de São Gotardo debaixo de sol e tentando, sob um fio de inocente esperança, ganhar alguma coisa ao comprar uma raspadinha.

Mas como eu poderia saber? Nunca havia visto a menina, não a conhecia. Furtos acontecem todo tempo. O que uma criança daquela idade foi fazer na loteria? Não há justificativa.

Chego em casa e escrevo essa crônica como um pedido de desculpas à menina que julguei pela aparência, pelas circunstâncias, pelo medo causado pela rotina de violência que vivenciamos o tempo todo. Esse medo que vai tornando-nos cada vez mais insensíveis.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário