sexta-feira, 4 de junho de 2021

Conto psicológico: A Herança - Rita de Cássia Vasconcelos - Intertextualidade com a obra "A orelha de Van Gogh", de Moacyr Scliar

 A herança

 “ ... Vincent teria pintado a o autorretrato com a ajuda de um espelho, por isso na pintura a orelha que aparece enfaixada é a direita e não a esquerda”. Eu estava relendo essa passagem de uma enciclopédia sobre as mais famosas obras de Vincent Van Gogh, quando o comerciante chegou.

Recebi-o em meu escritório. Era o dono de uma venda para o qual eu alugava um dos pontos comerciais que herdei de meu pai. O homem, de seus trinta e pouco anos era conhecido e apreciado por toda a comunidade pelo seu coração generoso. Eu, ao contrário, sempre fora apontado como um credor implacável, insensível e ganancioso. Aprendi ou herdei isso do eu pai... Melhor dizendo, tentei a vida inteira imitar isso e tudo em meu pai, na desesperada e infantil tentativa de agradá-lo. Falhei em tudo, em ser como ele e em agradá-lo. Tornei-me um velho mão-de-vaca, para me defender da minha própria falta de habilidade com os negócios. Ranzinza, um arremedo da seriedade e autoridade do meu pai. Intransigente, cópia mal feita do pulso firme dele.

O dono da venda me devia alguns meses de aluguel. Atraso fruto da sua benevolência com os clientes que pediam fiado e demoravam a pagá-lo. Eu já havia esperado o quanto podia, mas para manter pelo menos minha fama de implacável, que era a qualidade que me restara, dei-lhe um ultimato: ou quitava a dívida, ou devolvia o ponto.

Assim o homem chegou naquela tarde a minha casa. Trazia um semblante seguro, os olhos sorriam, o bigode e o franzir da testa disfarçavam a aparente alegria interna. Entrou, não sentou e foi logo fazendo a proposta. Uma herança de família, de valor afetivo inestimável, mas que certamente poderia render um bom dinheiro na mão de um colecionar admirador de Van Gogh, descreveu ele, sem mencionar que soubera da minha fixação pelo pintor. Tirou do bolso um vidrinho e entregou-me: a orelha decepada pelo próprio pintor Vincent Van Gogh. Peguei o frasco.

Quando eu tinha 12 anos, meu pai me levou à Holanda, em uma viagem de negócios. Decidiu que também caberia fazermos um pouco de turismo, pois uma viagem cara como aquela deveria render o máximo possível de retorno, fosse financeiro ou cultural. Levou-me a um museu e apresentou-me as obras de Van Gogh, descrevendo detalhadamente tudo sobre elas e sobre a vida do pintor. Eu nem sabia que meu pai tinha todo aquele conhecimento sobre a vida e obra de Van Gogh. Nem sabia que ele se interessava por arte. E nunca havia recebido tanta atenção dele. Em toda minha vida aquele foi o momento de maior proximidade que meu pai e eu tivemos. Desde então, tento reviver aqueles sentimentos me aproximando o quanto posso de tudo que tenha a ver com o pintor.

Olhei o frasco que o comerciante me entregara e com um sorriso irônico disse: “Você devia ter pesquisado mais”. Nesse instante me enchi de uma fúria misturada com mágoa, tristeza, decepção, uma raiva desproporcional àquela situação e que, consequentemente, assustou o homem, cujo semblante alegre e seguro foi substituído por uma feição de perplexidade e susto quando eu atirei o frasco com a orelha pela janela e o expulsei aos gritos de minha casa.

A dívida acabei perdoando, mais tarde, mas pedi que entregasse o ponto comercial. Não por questões financeiras, mas porque eu não queria nunca mais ver seu rosto. Da dívida eu o perdoara, mas do fato dele ter me transportado, ainda que sem saber, de volta para o pior dia da minha vida eu não o perdoei.

Meu pai estava muito doente, e todos sabíamos que aqueles eram seus últimos dias. Eu o amava, do meu jeito. E ele a mim, acredito. Mas ambos nunca soubemos bem como demonstrar um ao outro esse amor. A não ser naquele dia no museu. Então eu fiz uma viagem às pressas à Holanda e estava determinado a encontrar um presente que pudesse conectar meu pai e eu como naquele dia em que a obra de Van Gogh nos proporcionou sermos, de fato, pai e filho. Eu queria que as últimas lembranças de meu pai neste mundo fossem cheias do sentimento daquele dia.

Uma semana peregrinei por lojas, antiquários, feiras, casas de colecionadores e nada de especial encontrei. Voltei àquele museu que visitara com meu pai, já desesperançoso . Foi quando parou ao meu lado um senhor de cabelos e barba ruivos e disse: “Autorretrato com a orelha cortada”, mas é uma réplica.”

Eu disse que sabia e o olhei confuso. O homem então contou que era colecionador de itens de Van Gogh e que soubera por conhecidos do comércio da cidade que um senhor brasileiro estava procurando um item raro do pintor. Confirmei. Ele então disse que tinha algo para me apresentar, mas que não seria barato. Era o pedaço cortado da orelha de Van Gogh. Comprei.

Em uma situação normal, qualquer um desconfiaria, duvidaria, faria mil perguntas, exigiria provas. Mas a minha situação não era normal, pois o tempo do meu pai estava acabando. Tanto fazia se de fato aquela era mesmo a orelha do pintor, o que eu precisava era de um símbolo, algo que nos transportasse novamente para aquele dia no museu, quando eu tinha 12 anos.

Voltando ao Brasil, fui imediatamente ver meu pai, que havia sido hospitalizado. Seu estado havia piorado muito. Aproximei-me de seu leito, ele estava com os olhos fechados. Um calafrio me percorreu a espinha, segurei firme o frasco com o orelha de Van Gogh. Pai... Ele abriu os olhos. Senti um alívio. Filho... Não disse mais nada. Olhava-me fixamente. O senhor lembra daquela viagem de negócios à Holanda, quando o senhor me ensinou a gostar do Van Gogh? Um sutil sorriso lhe surgiu no canto dos lábios.

_ Eu lhe trouxe um presente, pai...

Segurei sua mão, já magra, pálida e fria, coloquei o frasco com a orelha de Van Gogh, e fechei seus dedos sobre ele. Com dificuldade ele aproximou o vidro de seu rosto para vê-lo melhor.

_ Filho... _ disse com a voz tão baixa que quase não ouvi.

Cheguei bem perto dele, pois parecia querer dizer alguma coisa e eu queria ouvir muito bem, pois aquelas poderiam ser suas últimas palavras. Aquele poderia ser o nosso último momento de pai e filho, nossa última chance de nos conectarmos, de demonstrarmos nossos sentimentos. Aquele momento poderia ser a última lembrança que ele levaria e a última e mais valiosa herança que me deixaria.

Sim... Aquele foi nosso último momento e as últimas palavras de meu pai foram:

_ Você devia ter pesquisado mais.

Rita de Cássia Vasconcelos.


A orelha de van Gogh 

Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.

Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação… Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam deles, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.

Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre  a trágica vida do artista.

Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu,  triunfante:

– Achei!

Levou-me para um canto – eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice – e sussurrou, os olhos brilhando:

– A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.

O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.

Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.

– Que dizes?

Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:

– E a orelha?

– A orelha? – olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.

No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de van Gogh, anunciou, triunfante.

E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh – orelha.

À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.

– Falta de respeito!

Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:

– Era a direita ou a esquerda?

– O quê? – perguntei, sem entender.

– A orelha que van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?

– Não sei – eu disse, já irritado com aquela história. – Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.

– Mas não sei – disse ele desconsolado. – Confesso que não sei.

Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:

– E a do vidro? – perguntei. – Era a direita ou a esquerda?

Mirou-me, aparvalhado.

– Sabe que não sei? – murmurou numa voz fraca, rouca. – Não sei.

E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha – qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não – verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.

Moacyr Scliar. In: Pipocas / Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Ana Miranda. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 13-16. Coleção Literatura em minha casa; v.2 Crônica e conto.

 


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