Este conto nos remete ao verdadeiro significado do Natal: o
renascimento da esperança, do amor e da fé em Deus.
Através da representação de um aparente milagre, Lygia
Fagundes Telles, em seu texto, nos faz lembrar que Deus ama todas as pessoas de tal
maneira, que enviou o Seu Filho Jesus Cristo para nos salvar renovando nossa fé
em Deus e nos guiando pelo caminho do bem através de seus ensinamentos.
Natal na barca
Lygia Fagundes Telles
Não quero nem devo
lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era
silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável,
tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz
vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado
esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um
vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando
nos braços a criança enrolada em
panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro
que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe
assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até
aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo
com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo.
Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas
olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade
de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos
como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo,
estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos
escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la.
Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as
pontas dos dedos na água.
— Tão gelada —
estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é
quente.
Voltei-me para a
mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no
banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes.
Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas
de uma certa dignidade.
— De manhã esse rio é
quente — insistiu ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão
verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa
fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para
o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
— Mas a senhora mora
aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta
barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...
A criança agitou-se,
choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com
o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas
mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou
ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje
mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre...
Mas Deus não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com
energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu
primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando
de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não
era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na
direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão.
Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso
desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade
tem?
— Vai completar um
ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão
alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era
muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse
abrindo os braços. E voou.
Levantei-me. Eu
queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os
tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele
instante. E agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à
sua espera?
— Meu marido me
abandonou.
Sentei-me e tive
vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora
não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.
— Há muito tempo? Que
seu marido...
— Faz uns seis meses.
Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga
namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de
nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma
manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou
com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu
estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de
arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver
ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão
molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha
mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens
tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as
sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter
realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos
remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra
sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta,
confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos,
aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é
conformada.
— Tenho fé, dona.
Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti
vagamente.
— A senhora não
acredita em Deus?
— Acredito —
murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê,
perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela
calma. Era a tal fé que removia montanhas...
Ela mudou a posição
da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz
quente de paixão:
— Foi logo depois da
morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora,
enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele!
Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo,
pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa
mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um
instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas,
encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus
me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz.
E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que
ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto,
tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em
mim.
Fiquei sem saber o
que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa,
levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale
novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos
para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo,
apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade
da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço
naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim
— Estamos chegando —
anunciou.
Apanhei depressa
minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse,
correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga
curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que
dormia:
— Chegamos!... Ei!
chegamos!
Aproximei-me evitando
encará-la.
— Acho melhor nos
despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar
meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola.
Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu
pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
— Acordou o
dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A
criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão
definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei
olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! —
disse ela, enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de
pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão
vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo
bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho
invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio.
E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
Texto extraído do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67.
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