A raspadinha
Rita Vasconcelos
O
medo da violência cotidiana vai tornando- nos cada vez mais insensíveis.
Estava
eu na loteria, como sempre, aguardando na fila para pagar meus boletos mensais.
Passa por mim uma garotinha de uns 9 ou 10 anos, roupas muito sujas, cabelo
despenteado. Instintivamente _ sim, por hora vou colocar a culpa no instinto de
autopreservação, podem me julgar _ puxo minha bolsa, que trazia pendurada no
ombro, para frente e a seguro junto ao corpo.
A
menina passa e vai ao caixa exclusivo para jogos. Pede à atendente uma
raspadinha. _ Criança pode comprar jogos? Enfim... _ A garota paga com uma
moeda e recebe outra de troco. Ela chega um pouquinho para o lado e ali mesmo
no balcão começa a raspar com a moeda o quadradinho que indica a premiação.
Ela
começa a raspar bem no meio, e eu começo a torcer para que ela ganhasse. Não
ganhou. Se tivesse ganhado, já daria para ver. Se tivesse ganhado já teria
mostrado para a moça do caixa que lhe pagaria seu prêmio. Se tivesse ganhado
não teria continuado raspando com a moedinha cada milímetro daquele
quadradinho. Cada mínimo milímetro... Esperança. Necessidade. Inocência. Talvez
o prêmio estivesse ali naquele cantinho! Não estava. Não ganhou...
A
menina, então, se dirige para a saída da loteria e eu me viro acompanhando seus
passos. Na porta da loteria um carrinho de picolé a esperava.
Nesse
instante senti vergonha de mim. O que foi que eu pensei ao puxar a bolsa para
junto do corpo? Que a menina ia me roubar? Logo aquela menina que, em vez de
brincar de Barbie e desenhar o dia todo como eu fazia na idade dela, estava
vendendo picolé, subindo e descendo os morros de São Gotardo debaixo de sol e
tentando, sob um fio de inocente esperança, ganhar alguma coisa ao comprar uma
raspadinha.
Mas
como eu poderia saber? Nunca havia visto a menina, não a conhecia. Furtos
acontecem todo tempo. O que uma criança daquela idade foi fazer na loteria? Não
há justificativa.
Chego
em casa e escrevo essa crônica como um pedido de desculpas à menina que julguei
pela aparência, pelas circunstâncias, pelo medo causado pela rotina de
violência que vivenciamos o tempo todo. Esse medo que vai tornando-nos cada vez
mais insensíveis.
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