A herança
“ ... Vincent teria pintado a o autorretrato
com a ajuda de um espelho, por isso na pintura a orelha que aparece enfaixada é
a direita e não a esquerda”. Eu estava relendo essa passagem de uma
enciclopédia sobre as mais famosas obras de Vincent Van Gogh, quando o
comerciante chegou.
Recebi-o em meu escritório. Era o dono de uma venda para o qual eu alugava um dos pontos comerciais que herdei de meu pai. O homem, de seus trinta e pouco anos era conhecido e apreciado por toda a comunidade pelo seu coração generoso. Eu, ao contrário, sempre fora apontado como um credor implacável, insensível e ganancioso. Aprendi ou herdei isso do eu pai... Melhor dizendo, tentei a vida inteira imitar isso e tudo em meu pai, na desesperada e infantil tentativa de agradá-lo. Falhei em tudo, em ser como ele e em agradá-lo. Tornei-me um velho mão-de-vaca, para me defender da minha própria falta de habilidade com os negócios. Ranzinza, um arremedo da seriedade e autoridade do meu pai. Intransigente, cópia mal feita do pulso firme dele.
O
dono da venda me devia alguns meses de aluguel. Atraso fruto da sua
benevolência com os clientes que pediam fiado e demoravam a pagá-lo. Eu já
havia esperado o quanto podia, mas para manter pelo menos minha fama de
implacável, que era a qualidade que me restara, dei-lhe um ultimato: ou quitava
a dívida, ou devolvia o ponto.
Assim
o homem chegou naquela tarde a minha casa. Trazia um semblante seguro, os olhos
sorriam, o bigode e o franzir da testa disfarçavam a aparente alegria interna.
Entrou, não sentou e foi logo fazendo a proposta. Uma herança de família, de
valor afetivo inestimável, mas que certamente poderia render um bom dinheiro na
mão de um colecionar admirador de Van Gogh, descreveu ele, sem mencionar que
soubera da minha fixação pelo pintor. Tirou do bolso um vidrinho e entregou-me:
a orelha decepada pelo próprio pintor Vincent Van Gogh. Peguei o frasco.
Quando
eu tinha 12 anos, meu pai me levou à Holanda, em uma viagem de negócios.
Decidiu que também caberia fazermos um pouco de turismo, pois uma viagem cara
como aquela deveria render o máximo possível de retorno, fosse financeiro ou
cultural. Levou-me a um museu e apresentou-me as obras de Van Gogh, descrevendo
detalhadamente tudo sobre elas e sobre a vida do pintor. Eu nem sabia que meu pai
tinha todo aquele conhecimento sobre a vida e obra de Van Gogh. Nem sabia que
ele se interessava por arte. E nunca havia recebido tanta atenção dele. Em toda
minha vida aquele foi o momento de maior proximidade que meu pai e eu tivemos.
Desde então, tento reviver aqueles sentimentos me aproximando o quanto posso de
tudo que tenha a ver com o pintor.
Olhei
o frasco que o comerciante me entregara e com um sorriso irônico disse: “Você
devia ter pesquisado mais”. Nesse instante me enchi de uma fúria misturada com
mágoa, tristeza, decepção, uma raiva desproporcional àquela situação e que,
consequentemente, assustou o homem, cujo semblante alegre e seguro foi
substituído por uma feição de perplexidade e susto quando eu atirei o frasco
com a orelha pela janela e o expulsei aos gritos de minha casa.
A
dívida acabei perdoando, mais tarde, mas pedi que entregasse o ponto comercial.
Não por questões financeiras, mas porque eu não queria nunca mais ver seu
rosto. Da dívida eu o perdoara, mas do fato dele ter me transportado, ainda que
sem saber, de volta para o pior dia da minha vida eu não o perdoei.
Meu
pai estava muito doente, e todos sabíamos que aqueles eram seus últimos dias. Eu
o amava, do meu jeito. E ele a mim, acredito. Mas ambos nunca soubemos bem como
demonstrar um ao outro esse amor. A não ser naquele dia no museu. Então eu fiz
uma viagem às pressas à Holanda e estava determinado a encontrar um presente
que pudesse conectar meu pai e eu como naquele dia em que a obra de Van Gogh
nos proporcionou sermos, de fato, pai e filho. Eu queria que as últimas
lembranças de meu pai neste mundo fossem cheias do sentimento daquele dia.
Uma
semana peregrinei por lojas, antiquários, feiras, casas de colecionadores e
nada de especial encontrei. Voltei àquele museu que visitara com meu pai, já
desesperançoso . Foi quando parou ao meu lado um senhor de cabelos e barba
ruivos e disse: “Autorretrato com a orelha cortada”, mas é uma réplica.”
Eu
disse que sabia e o olhei confuso. O homem então contou que era colecionador de
itens de Van Gogh e que soubera por conhecidos do comércio da cidade que um
senhor brasileiro estava procurando um item raro do pintor. Confirmei. Ele
então disse que tinha algo para me apresentar, mas que não seria barato. Era o
pedaço cortado da orelha de Van Gogh. Comprei.
Em
uma situação normal, qualquer um desconfiaria, duvidaria, faria mil perguntas,
exigiria provas. Mas a minha situação não era normal, pois o tempo do meu pai
estava acabando. Tanto fazia se de fato aquela era mesmo a orelha do pintor, o
que eu precisava era de um símbolo, algo que nos transportasse novamente para
aquele dia no museu, quando eu tinha 12 anos.
Voltando
ao Brasil, fui imediatamente ver meu pai, que havia sido hospitalizado. Seu
estado havia piorado muito. Aproximei-me de seu leito, ele estava com os olhos
fechados. Um calafrio me percorreu a espinha, segurei firme o frasco com o
orelha de Van Gogh. Pai... Ele abriu os olhos. Senti um alívio. Filho... Não
disse mais nada. Olhava-me fixamente. O senhor lembra daquela viagem de
negócios à Holanda, quando o senhor me ensinou a gostar do Van Gogh? Um sutil
sorriso lhe surgiu no canto dos lábios.
_
Eu lhe trouxe um presente, pai...
Segurei
sua mão, já magra, pálida e fria, coloquei o frasco com a orelha de Van Gogh, e
fechei seus dedos sobre ele. Com dificuldade ele aproximou o vidro de seu rosto
para vê-lo melhor.
_
Filho... _ disse com a voz tão baixa que quase não ouvi.
Cheguei
bem perto dele, pois parecia querer dizer alguma coisa e eu queria ouvir muito
bem, pois aquelas poderiam ser suas últimas palavras. Aquele poderia ser o
nosso último momento de pai e filho, nossa última chance de nos conectarmos, de
demonstrarmos nossos sentimentos. Aquele momento poderia ser a última lembrança
que ele levaria e a última e mais valiosa herança que me deixaria.
Sim...
Aquele foi nosso último momento e as últimas palavras de meu pai foram:
_
Você devia ter pesquisado mais.
Rita de Cássia Vasconcelos.
A orelha de
van Gogh
Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu
pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante
quantia. E não tinha como pagar.
Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe
imaginação… Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os
estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados,
onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da
existência. Os fregueses gostavam deles, entre outras razões porque vendia
fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era
diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu
pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.
Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em
se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria
um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos.
Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência
era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa
estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo
menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre a trágica
vida do artista.
Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van
Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de
domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:
– Achei!
Levou-me para um canto – eu, aos doze anos, era seu
confidente e cúmplice – e sussurrou, os olhos brilhando:
– A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.
O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou
minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do
marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.
Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num
acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu
pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como
herança de seu bisavô, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia
em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.
– Que dizes?
Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo,
um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o
maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa
deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:
– E a orelha?
– A orelha? – olhou-me espantado, como se aquilo
não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se
arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente
consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.
No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia,
radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um
frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha
de van Gogh, anunciou, triunfante.
E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas,
ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh – orelha.
À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora,
enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso
mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu
pai e o jogara pela janela.
– Falta de respeito!
Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse
até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai
resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou,
olhou-me fixo:
– Era a direita ou a esquerda?
– O quê? – perguntei, sem entender.
– A orelha que van Gogh cortou. Era a direita ou a
esquerda?
– Não sei – eu disse, já irritado com aquela
história. – Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.
– Mas não sei – disse ele desconsolado. – Confesso
que não sei.
Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me
assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia
que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:
– E a do vidro? – perguntei. – Era a direita ou a
esquerda?
Mirou-me, aparvalhado.
– Sabe que não sei? – murmurou numa voz fraca,
rouca. – Não sei.
E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar
bem uma orelha – qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não – verá que seu
desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E
nunca mais sairia dele.
Moacyr Scliar.
In: Pipocas / Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Ana Miranda.
1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 13-16. Coleção Literatura em
minha casa; v.2 Crônica e conto.
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