TU PRA LÁ TU PRA CÁ
(Autor: Artur Azevedo)
Lousada, sujeito de meia-idade; Carolina, mulata gorda.
Lousada. — Ó Carolina, puseste ao sol a cartola e a sobrecasaca?
Carolina. — Sim, senho.
L. — Vai buscá-las.
C. —- (trazendo os objetos pedidos). O senho vai fazê alguma visita de
importância?
L. — Vou à central receber o Pena.
C. —• Que Pena?
L. — O futuro presidente da República.
C. — O Senho conhece ele?
L. — Se o conheço! Ora essa! Tratamo-nos por tu!
C. — Saia daí, seu Lousada! deixe de prosa!. . .
L. — De prosa como?
C. — Faz quatro ano que o senho foi à centra recebe o Rodrígue Arve, e também
nessa ocasião me disse que tratava ele por tu. . .
L. — E então?
C. — Ora! naquele dia em que a gente foi nas regata de Botafogo, o Rodrígue
Arve passou juntinho de nós. O senho fez uma grande barretada, e ele nem
como coisa, e foi passando. Quá! não acredito que o senho trate ele por tu!
L. — Estás enganada. O Chico não me viu. Nessas festas não vê ninguém. Além
de ser míope, é muito encalistrado. Então quando ouve tocar o hino é uma
desgraça! E no momento em que ele passou para entrar no pavilhão, estavam
tocando o hino.
C. — E o senho por que cumprimentou ele com tanta cerimónia?
L. — Não cumprimentei o homem: cumprimentei o presidente da República!
C. — Ele viu perfeitamente o senho, e não fez caso.
L. — Já te disse que o hino; mas. . . quando não fosse? Esses homens, quando
grimpam às altas posições, esquecem-se naturalmente dos amigos pobres. Vê,
por exemplo, o. . . o. . . Quem há de ser? Cardoso da botica. Ele e eu
tratamo-nos por tu, não é? Pois bem: faze o Cardoso presidente da República, e
verás! Se queres conhecer o vilão. . .
C. — Sim o Cardoso da botica o senho trata por tu, mas o Rodrígue Arve não.
L. — Ó mulher! O Chico e eu no tempo da monarquia, éramos tu para lá tu pra
cá!
C. — Então o Chico é muito ruim, porque o senho ainda não tem um bom
emprego, e não é por não pedir.
L. — Olha, talvez ele não me servisse justamente por sermos íntimos. Os amigos
do chefe do Estado estão sempre de mau partido, porque com os amigos não há
cerimônias, e são eles os sacrificados. Se eu não tivesse tanta familiaridade com
o presidente da República, a estas horas estaria bem colocado!
C — Nesse caso o senho não arranja nada também com o Pena.
L. — Por quê?
C. — Pois não trata ele por tu?
L. — É certo; mas não há regra sem exceção. Deixa estar que logo, quando ele
saltar do trem, hei de achar meio de lhe segredar ao ouvido: "Afonso, meu
velho, não te esqueças de mim..."
AZEVEDO, Artur. Teatro à Vapor. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. Disponível em:
<http://www.teatronaescola.com/index.php/banco-de-pecas/item/teatro-a-vapo
r-arthur-azevedo>. Acesso em: 3 nov. 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário